Diário da Pandemia

Herman Faulstich
6 min readJan 3, 2021

No início da pandemia resolvi fazer um diário. Foi mudando até chegar a um conto de presidiário.

2° dia de quarentena (no primeiro eu só comi, assisti Netflix e Youtube ):

- Corrida de sete quilômetros na estrada de Bulhões;
- Malhação na velha mesa romana e barra: ombros, costas e trapézio; ⠀⠀⠀
- Netflix, Youtube e comida;
- Acho que vou pegar meu pai amanhã como boneco pra treinar jiu-jitsu.😈

3° dia de quarentena.

- Isométricos para pegadas: tira-teima e pendurado no quimono pela barra;
- Malhação: peito e tríceps; ⠀⠀⠀
- Netflix, Youtube e comida;
- Amanhã pegarei mesmo o meu pai como boneco pra treinar jiu-jitsu.😈

4° dia de detenção.

Os presos do bloco B obrigaram-me à raspar o cavanhaque. A direção colocou-me com os nazistas e eles têm um padrão visual de cara limpa;⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
- Não sei falar alemão, mas imito bem a pronúncia pela convivência com o meu avô. Falo qualquer coisa em tom autoritário e se amarram. Só não podem descobrir que eu curto cabala;⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
- Mas foi só isso que fizeram comigo. Até agora;⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
-Acho que gostam de mim, pois passo umas séries legais de bíceps além de alguns estrangulamentos da hora;⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
- Vou me dar bem por aqui;⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
- Corrida, isométrico no quimono, barra e levantamento terra. Não consegui achar meu pai para fazê-lo de boneco de jiu-jitsu. Acho que foi saquear algum supermercado com os amigos com quem joga dominó na praça.

5° dia de detenção. ⠀⠀⠀
⠀⠀⠀
- Mudei de gangue; estou agora com os latinos. Deu ruim para os nazistas. Arranjaram confusão com os skinheads e apanharam feio. No meio do tumulto não sabiam de onde eu era e apanhei dos dois lados;⠀⠀⠀
- Os latinos viram a surra e acharam que eu era inimigo de ambos. Daí acolheram-me;⠀
- Continuei passando umas séries de bíceps show de bola e os estrangulamentos;⠀⠀⠀
-Vou me dar bem por aqui;⠀⠀⠀
- Desisti de usar o meu pai como boneco de jiu-jitsu. No meio da revolução que ele e seus colegas jogadores de dominó na praça fizeram no saque do supermercado Vadinho, “O mais barato da região”, recebeu uma ligação da minha mãe para trazer farinha de rosca, tomate e mandioca. Voltou com farinha de mandioca, caqui e uma antena de TV. Agora está emburrado na sala pela bronca que tomou; ⠀⠀⠀⠀⠀
- Barra, flexão de braço e isométrico de antebraço.

6° dia de detenção ☹
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- Colei nos crentes. Eles são contra o sexo antes do casamento e entre pessoas do mesmo sexo ao contrário dos latinos. A rapaziada estava me olhando estranho no banho. A parada estava tensa;⠀⠀
- O pastor Marquinhos AR-15, 147 anos de prisão por homicídio quadruplamente qualificado, tráfico de pessoas, sequestro, roubo e atentado à bomba em hospital gostou de mim. É gente boa comigo. Encontrou Jesus e quer o mesmo pra mim. Bicho, já sinto o espírito santo se manifestando!
- Mas se souber que curto astrologia, tarô, cabala, que acredito que o diabo não existe e aceito sexo antes do casamento (fora da prisão), estarei frito;⠀
- O lance é falar em línguas. Falar qualquer coisa no meu alemão inventado está ajudando muito nos cultos;
- Vou me dar bem por aqui;⠀⠀
- Hoje só corrida: 5 km.

7° dia de detenção ☹.
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- Tretei com os crentes. Os caras não bebem, pô! Nem uma cervejinha! Falam que a Terra é plana, não assistem a Rede Globo… Ah, não! ⠀⠀⠀
- Fui para a cozinha; é território neutro. Lá é o centro de informações do presídio. Menino, fico sabendo de cada coisa! Nem te cont… aham... deixa pra lá;⠀
- Notícias boas apesar de tudo: o Baleia, do pavilhão D, o nosso prisioneiro mais gordo, não veio almoçar. Dizem que sumiu. Sobrou mais para o dia seguinte. Apesar do atraso na entrega de alimentos, ainda bem que apareceu, não sei de onde, muita carne. Deu para fazer bastante torresmo; ⠀⠀
- Hoje foi dia de malhar braço.

8° dia de detenção ☹.

- Estou na solitária. Tudo por causa da Valeska, Boquinha de Veludo, a noiva do chefe do pavilhão 2. Ela é o travesti mais safo do presídio. Se engraça apenas com os poderosos. Dizem até que o diretor já esteve ali. Ela deu chilique querendo mais carne. Não rola porque temos cota. Ela pegou outro pedaço e tomei de volta. Pra que fiz isso… Começou a chorar dizendo que havia tirado a carne dela. Foi verdade, mas não deu para explicar direito. Geral me cercou e o macho dela já chegou dando um pescotapa e as bola dos zóio quase saíram, em seguida juntaram os nazi, latinos, os crentes, ciganos, judeus, Testemunhas de Jeová, espíritas, comunistas, cadeirantes , galera da visitação e me cobriram de porrada. Até o diretor, apareceu do nada, chutou-me as bolas e vazou. Mulher é a semente da discórdia, mesmo.

- Fui jogado na solitária. De repente um guarda abriu a portinhola e falou sorrindo: ⠀⠀
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“Aí, manezão, quando sair daqui, vais passar um tempo na ala das ‘meninas’. Pensou você de espartilho… Branquinho? Branco, né, afinal, você ainda é virgem. Ainda. Hehehehehe…”
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- Hoje corrida de 8 Km.

9° dia de detenção ☹ ⠀⠀⠀
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-Já estou há 5 minutos na solitária e não aguento mais. Estou pensando muito, daí só penso besteira. Por isso que as pessoas trabalham, para não pensar. Aí eu fico pensando no que estou pensando. São dois “eus” que pensam: o que pensa e o que pensa no que foi pensado. O que pensa em quem pensou, nem sempre concorda com ele. Então eu percebo alguém que pensa naquele que pensou no que pensou primeiro. São três! Não, não, estou percebendo um quarto eu… Cara, está tão legal que nem me sinto mais sozinho aqui!

-Não conseguimos deixar de pensar que vamos para a ala das travestis quando sairmos daqui. Será que vamos virar uma? Aí será uma quinta “eu”. Uma mulher no meio de quatro homens. Isso não vai dar certo; ela vai querer mandar na gente! Não cederemos ao sistema! Abaixo a ditadura do feminino! ⠀
- O guarda ouviu a revolução que estávamos fazendo na solitária, abriu a portinhola e expressou-se na contumaz eloquência dos agentes da lei e da ordem:
“ Ô, Fofolete! Vai parando com essa gritaria aí, porra! Se continuar com isso vai entrar no cacete! Quer dizer, vai entrar antes do que pensava, UAHAHAHAHA! UAHAHAHAHA!”

- É… Já que não tem jeito, vamos nos chamar Valkíria. Valkíria é uma guerreira viking, loura, alta, olhos azuis, linda, forte e peituda com tranças enormes. Seremos a fêmea alfa dessa porra! Vamos mandar geral! Aquelas piranhas tão achando o quê? Nós somos as piranhas chefes!!!

- Isso aí! A gente vai… ei… O que é aquilo ali no canto? Está nos olhando! É um outro eu que se projeta dos recônditos do meu ser nas trevas deste cubículo que rouba a nossa sanidade? Peraí, já sei! Vem cá!!!! Huuummmumm… Gostosa essa barata. ⠀
- Hoje foi dia de treinar perna.

541° dia de cativeiro
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- Ferrou tudo! Eles irão me tirar da solitária hoje. Não quero ser noiva de ninguém! Não quero ser mais a Valkíria!
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Ouvi o guarda chegando e entrei em desespero; chorei igual criança em posição fetal. Não conseguia pensar em mais nada para me livrar daquilo. E agora? Mas o barulho da tranca sendo aberta antecedeu uma revelação; ah, o poder do cagaço!! Uma luz divina adentrou na minha limitada mente e tive a visão que me salvaria: apareceu, em um flash, a menina do filme “O Exorcista”!

Quando o guarda entrou eu estava sentado abraçando os joelhos, de cabeça baixa, pendulando de um lado para o outro cantando com voz infantil. O representante da lei manteve-se parado, vendo aquilo e exclamou baixinho:

Que porra é essa?

Então caí de costas no chão e fiquei na posição de “ponte”, aquele exercício de alongamento que enverga-se a coluna de barriga pra cima esticando as pernas e os braços. Fiz olhando para ele. E fui na sua direção gritando igual ao vocalista do Sepultura. O representante da lei manteve-se parado, vendo aquilo, e exclamou alto:

“Que porra é essaaaaaaaaa?”

Ele correu e saí atrás daquela maneira até que o encurralei no final do corredor. O cara não tinha mais cor e a rodela de mijo na calça crescia rapidamente. Então virei-me sentando de pernas cruzadas e falei olhando fixamente para seus olhos, babando pelo canto esquerdo da boca:

“Moço, vamu blincá di buneca?”

Prontamente o urinado carcereiro gritou:

“Tragam duas bonecas! Agora!!!”
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- Hoje malhei costas, ombro e isométrico no quimono.

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